Este artigo é uma sinopse das contribuições apresentadas na Reunião Estratégica no 4 do Smart City Business Brazil Congress 2022, realizado em São Paulo, no dia 25/05/22. Ela tratou sobre a possibilidade da implantação da tarifa zero no transporte coletivo municipal e contou com a participação de gestores públicos e privados, bem como de especialistas do setor.
Ao longo dos anos, várias iniciativas legislativas vêm tratando do transporte urbano. Um dos exemplos, é o Estatuto das Cidades, instituído através da Lei no 10.257/2001, que incluiu a garantia do direito a cidades sustentáveis e de forma mais específica, o direito ao transporte como uma das diretrizes da política urbana.
Também, merece destaque a Lei de Mobilidade que instituiu os conceitos da tarifa de remuneração da concessionária e a tarifa pública paga pelo usuário do serviço (ou tarifa de utilização). Além disso, essa lei estabeleceu a possibilidade dos subsídios que já são praticados em mais de 250 cidades brasileiras e que, segundo algumas estimativas, comprometem de 8 a 10% dos orçamentos municipais.
Atualmente se estuda um marco regulatório próprio para o transporte público, contemplando a sua contratação, custeio, gestão, fiscalização e integração metropolitana, entre outros aspectos. Também, se pretende avançar na definição das responsabilidades do poder público em suas três instâncias federativas.
O fato consolidado é que o transporte, apesar de ser um serviço essencial e um direito constitucional, na maior parte das cidades brasileiras ainda é custeado exclusivamente pelos usuários. Além de suas passagens, os usuários também, arcam com as gratuidades que no país chegam a representar 20% do custo operacional dos serviços.
Também é importante destacar que cabe ao contratante definir a qualidade dos serviços, como é o caso da operação nos horários de pico, que requer um maior número de ônibus, gerando maiores custos. Além disso, é necessário contar com vias adequadas que privilegiem o transporte coletivo em relação ao particular, caso contrário, o tráfego será um dos fatores que comprometerá o atendimento adequado da população.
Assim, a ampliação do atendimento à demanda não significa necessariamente maior qualidade dos serviços. Por exemplo, em São Paulo capital, que conta com cerca de 13 mil ônibus, um aumento da frota em 50%, representaria quase 20 mil ônibus em circulação, porém a falta de infraestrutura viária apropriada, não iria propiciar mais qualidade nos serviços.
Por sua vez, a tarifa zero, um tema que vem sendo tratado há várias décadas no Brasil, ganha relevância face ao desafio social e econômico do país, especialmente na pós-pandemia Covid-19. Atualmente, as tarifas do transporte estão sendo pressionadas pelo crescente aumento dos custos operacionais e se estima que cerca de 40% da população se desloca a pé.
Dentro desse contexto, a tarifa zero é uma solução com expressivos benefícios sociais tangíveis e intangíveis, principalmente no tocante à garantia de acesso à cidade e de oportunidades para a população, especialmente às parcelas com menor poder aquisitivo.
Porém, a tarifa zero também se torna um desafio. Em algumas localidades nas quais essa tarifa foi implantada, foram constatados aumentos de até quatro vezes na demanda pelo transporte coletivo, exigindo recursos públicos adicionais para garantir o custeio da maior quilometragem rodada e da nova quantidade de veículos utilizados.
A título ilustrativo, pode ser lembrado o caso de Caucaia, cidade cearense com 370 mil habitantes, que implantou a tarifa zero. Nessa cidade, o número de passageiros de 509 mil em agosto de 2021, saltou para aproximadamente 1,8 milhão em fevereiro de 2022, ou seja, cresceu em 250%. Como consequência, ocorreu um aumento expressivo nos custos fixos e variáveis do transporte coletivo.
Nos sistemas nos quais se implantou a tarifa zero, parte de tais custos, pode ser reduzida pela extinção dos postos de trabalho e pela supressão de equipamentos destinados à emissão e cobrança das passagens, bem como pela redução dos dispêndios com fiscalização e similares. Dessa forma, apesar dos passageiros não pagarem pelo uso do transporte, foi necessário viabilizar recursos adicionais para pagamento da operação, além daqueles necessários para os investimentos em vias, pontos e terminais, entre outros.
Nesse contexto de tarifa zero ou de tarifas reduzidas, um dos desafios iniciais é viabilizar alternativas financeiras para atenuar a concorrência orçamentária do transporte coletivo com os demais dispêndios usuais e normais das municipalidades. Com o pagamento parcial dos custos ou até mesmo sem o pagamento da tarifa pelos usuários do transporte coletivo, os custos continuam presentes e devem ser pagos, eis que continua a existir a relação entre o poder concedente e a concessionária.
As novas fontes de financiamento do transporte coletivo podem contemplar recursos oriundos do transporte privado via pedágio urbano, estacionamento rotativo, parcelas do IPVA, implantação da CIDE municipal sobre a gasolina e álcool utilizados nos veículos particulares. Também, podem contemplar parcelas do IPTU oriundo da valorização imobiliária nos eixos de transporte, exploração dos ativos imobiliários e parcerias de negócios eletrônicos, publicidade e correlatos. Outra possível fonte é a alteração da Lei do Vale Transporte possibilitando que os respectivos recursos sejam destinados a um fundo municipal para o sistema.
Porém é muito importante ressaltar as externalidades positivas geradas pelo transporte e que devem ser valorizadas nas prioridades do orçamento público. Esse modal é mais sustentável - econômica, social e ambientalmente - pois é inclusivo e amplia a locomoção, otimiza e democratiza o uso dos espaços urbanos, racionaliza o uso dos recursos naturais e é menos poluente. Assim, a implantação da tarifa zero ou de redução tarifária no transporte coletivo, são relevantes, como ilustram os casos de Araucária e Paranaguá, dois casos paranaenses, apresentados a seguir.
A cidade de Paranaguá possui 160 mil habitantes e cerca de 75% de sua receita provém do Porto de Paranaguá, um dos mais importantes do país. No final de 2021, através da Lei Complementar no 269/2021, a cidade instituiu “tarifa zero” para todos os usuários do seu transporte público. Posteriormente, via Lei Complementar no 275/2022, procedeu ajustes na tarifa zero, definindo normas gerais para a isenção tarifária e procedimentos de controle, fiscalização e auditagem do sistema que foram regulamentados pelo Decreto no 3373/2022.
Assim, na modelagem em vigor, além dos subsídios da ordem de R$ 25 milhões anuais, também são utilizados recursos do vale-transporte, pago pelos empregadores, estimados em R$ 4,8 milhões anuais. Por sua vez, os usuários precisam fazer o cadastro junto à Prefeitura para ter o direito a 16 passagens gratuitas por mês e, quem não o faz, tem que pagar.
Juntamente com a implementação da tarifa zero, o município construiu um novo terminal urbano de passageiros e uma área de transbordo possibilitando a interligação entre as regiões norte e sul da cidade e, assim, otimizou os deslocamentos em termos de tempo e quilometragem total percorrida.
Antes da implementação da tarifa zero, o sistema de transporte público Paranaguá emitia em média 286,3 mil passagens por dia, percorria 187,5 mil km mensais e utilizava uma frota de 33 ônibus. Dois meses e meio após a implantação da tarifa zero, o sistema passou a operar com 576,3 mil passagens diárias (aumento de 100%), os trajetos alcançaram 236.290 km mensais (26% a mais) e a frota foi aumentada para 43 ônibus (acréscimo de 30%).
Com a medida adotada em Paranaguá, também foi constatado aumento mensal de 260% de passageiros das regiões de baixo poder aquisitivo e que, até então, apresentavam inexpressivo número de passageiros. De forma geral, houve um aumento de 30 mil usuários e, assim, estima-se que 45% da população acima de seis anos esteja utilizando o transporte público municipal.
Nesse período, também ocorreu um aumento de 40% nas vendas no comércio local, provavelmente pelo fato de que mais pessoas tiveram condições de ir até o centro e de se deslocar pela cidade, além de que a economia com as tarifas gerou recursos para outros dispêndios. Também, estima-se um aumento de 30% no número de pessoas que circulam na cidade. Além disso, recentemente foi constatado que o transporte está em primeiro lugar na avaliação dos serviços municipais.
A adoção da medida em Paranaguá tem despertado a atenção de outras cidades brasileiras que tem clara que a medida demanda vontade política, pois as condições jurídicas estão disponíveis. Porém, ela deve ser ajustada à realidade de cada cidade, pois não há solução padrão.
Já Araucária, cidade com 148 mil habitantes e próxima a Curitiba, desde 2017 tem reduzido as tarifas do transporte coletivo. Entre maio de 2022 e dezembro de 2017, na contramão do aumento dos custos operacionais, a tarifa foi sendo progressivamente reduzida chegando a uma redução total de 64,7% no período. Um dos resultados foi o expressivo aumento de 87% no número de usuários que em janeiro de 2017 era de 32 mil e passou para 60 mil em março de 2021.
Além das reduções tarifárias, Araucária isentou o transporte aos domingos para todos os usuários e implantou diversas outras isenções, tais como: para os estudantes, pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social; responsáveis por pessoa com deficiência; agentes comunitários de saúde; mulheres grávidas e pessoas com câncer ou HIV. Também, disponibilizou internet grátis em todos os ônibus, compra de créditos via pix e liberação automática, atendimento via diversas mídias, monitoramento da frota em tempo real, implantação de 920 pontos abrigados e integração temporal sem pagamento de outra tarifa.
Em Araucária os resultados no transporte coletivo se deram graças à gestão mais austera que, entre outras medidas, contemplou a redução de quase uma centena de servidores públicos que atuava no setor e de uma maior atenção às gratuidades, muitas das quais sem fontes de recursos.
Finalizando, de forma geral, deve ser destacado que ao longo dos anos e de forma injusta, o transporte público começou a ser tratado como negócio, objeto de uma concessão que bastaria ser fiscalizada. Na verdade, ele precisa ser tratado como um direito da população e reconhecido como prioridade nas decisões governamentais e, nesse sentido, o poder público é um protagonista fundamental.
Sob diversos pontos de análise, a tarifa zero e a redução tarifária devem ser reconhecidas como importantes ferramentas para promover a inclusão social e criar oportunidades, eis que o transporte é indispensável para promover a acesso das pessoas aos seus direitos fundamentais como saúde, educação, qualificação profissional, ao lazer e a cultura; bem como para a construção de cidades sustentáveis e com melhor qualidade de vida.
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