A discussão sobre os impactos da ação humana no mundo em que vivemos já tem cinquenta anos. Temos que reconhecer que não apenas as atividades econômicas, mas todo tipo de atividade tem efeitos materiais no mundo. Por isso, a sustentabilidade madura não pensa em preservar a todo custo, decrescimento ou outras alternativas que se aventaram no início dessa perspectiva econômica. A definição moderna de atividade sustentável é aquela cujo impacto que gera esteja dentro do limite de regeneração do meio ambiente. Com isso, a sustentabilidade pretende garantir que as gerações futuras tenham as mesmas alternativas que a geração atual.
Para tanto, precisamos mudar a forma que atuamos, como sociedade, no mundo. Por exemplo, fontes não-renováveis de energia – como petróleo, carvão e fissão nuclear – precisam ser substituídas por fontes renováveis de energia – solar, eólica e maremotriz, por exemplo. A lógica por trás disso é que se acabarmos com um recurso não renovável, uma geração futura não poderá dispor desse recurso. Esses fenômenos de mudança de paradigma de um setor (como o de geração de energia) são conhecidos pelos cientistas como transições. Eles estão em curso a todo momento, como por exemplo quando a mobilidade baseada na tração animal mudou para um modelo baseado em motores de combustão interna. São fenômenos complexos, não apenas fundamentados no desenvolvimento tecnológico, mas na dança política envolvida na difusão em larga escala dessas tecnologias. A transição para modelos que não esgotem os recursos naturais, humanos e econômicos (seja na geração de energia, na mineração, agricultura, indústria ou serviços) é a transição para a sustentabilidade. Ora, seria ingênuo pensar em um sistema sustentável de geração de energia sem considerar como a energia é consumida. Por isso os fenômenos de transição envolvem-se tanto com a perspectiva dos consumidores e não apenas com a da produção.
A arena central para que as transições aconteçam são as cidades e muitas cidades ao redor do mundo têm assumido a liderança na implantação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade. Segundo o IBGE, 85% da população brasileira vive em áreas urbanas e são nelas que se consumem a energia, que grandes quantidades de pessoa se deslocam diariamente, onde o transporte de mercadorias é realizado, que estão as residências que precisam ser abastecidas, onde se cozinha e gera-se lixo para ser tratado pelos sistemas de gerenciamento de resíduos sólidos urbanos e de saneamento público.
Não à toa, na última International Sustainability Transitions Conferente, uma das principais conferências mundiais sobre a transição para a sustentabilidade, que ocorreu no final de agosto em Viena, o destaque foi, justamente, para a divulgação de iniciativas locais que, apesar do limitado poder regulatório das municipalidades, promovem o engajamento dos cidadãos nos processos de transição em áreas urbanas. Laboratórios urbanos, de inovação social, redes colaborativas de desenvolvimento de políticas públicas, experimentos do mundo real e outras formas de participação dos habitantes, instituições de pesquisa e de governos, no desenvolvimento de soluções para a insustentabilidade do modelo tradicional de cidade, foram apresentadas.
De uma forma muito clara, essas iniciativas estão ligadas a aspectos de cidades mais inteligentes. Essa inteligência, porém, vai mais longe que a simples contratação de plataformas informatizadas de serviços públicos. Uma cidade é verdadeiramente inteligente quando promove a participação e o engajamento de diferentes atores nas ações de governo. Não basta ter um aplicativo de horários de ônibus para dizer que uma cidade é inteligente. Ela é inteligente quando envolve o cidadão no desenvolvimento e difusão de práticas alternativas e, potencialmente, mais sustentáveis de mobilidade, como o compartilhamento de veículos, a utilização de veículos elétricos, ciclomobilidade e micromobilidade, por exemplo, adequados à realidade da população local. Da mesma forma, um site de agendamento de consultas na rede municipal de atendimento à saúde não confere automaticamente à uma cidade a credencial de “inteligente”. É preciso pensar a saúde pública de forma integral em conjunto com a população, incentivando prática de exercício físico, a medicina preventiva e comunitária, a vigilância sanitária efetiva e participativa, em programas desenhados com a participação da sociedade civil.
O abastecimento também pode ser mais inteligente, com programas de agricultura urbana e segurança nutricional envolvendo a população com o cuidado e a gestão dos espaços da cidade. Sistemas de saneamento público (com aproveitamento energético de tratamento de esgoto e reuso de águas) e tratamento de resíduos (com coleta seletiva de lixo tóxico, reciclável e compostável, por exemplo) também pode ser mais sustentáveis, mas são iniciativas que dependem do envolvimento do cidadão nas suas práticas cotidianas. Colaboração e gestão democrática parecem ser palavras-chave dessa forma de gestão pública.
Na minha opinião, inteligência é um atributo das cidades em que o cidadão se sente parte dela, e não apenas um habitante que consome serviços públicos oferecidos pela prefeitura. Cabe ao gestor público incentivar e facilitar a participação da população na vida urbana e, para isso, ferramentas de gestão democrática, como as consultas públicas, formação de conselhos locais, a delegação da prestação de serviços para a sociedade civil organizada, são fundamentais, desde que em um ambiente de desburocratização e incentivo à eficiência administrativa.
Precisamos acreditar que os habitantes são capazes de contribuir com a gestão da cidade e já dispomos de tecnologias de informação para promover tanto a participação quanto a sustentabilidade nos sistemas urbanos. A gestão municipal deve deixar de ser paternalista e passar a ser mediadora na busca por soluções locais. Mais que respostas, eu tenho perguntas: será que estamos diante de uma transição no modelo de gestão pública brasileira para um modelo de cidades inteligentes? Como nossas cidades estão se preparando para isso?