A Instalação de câmeras de vídeo nas cidades teria função relevante na segurança pública, em termos de prevenção e redução de crimes nas ruas? Nas últimas duas décadas muitos prefeitos procuraram a alternativa da instalação de milhares de câmeras, como instrumento de sua participação na segurança pública, sabidamente grande preocupação de seus munícipes
Alguns pressupostos, entretanto, foram equivocados, como por exemplo:
De fato, as câmeras geram inibições. Uma experiência realizada na faculdade de psicologia da Universidade de New Castle, na Inglaterra, revelou esse efeito. No local havia uma máquina de autosserviço que disponibilizava café e chá aos estudantes, aos quais um aviso solicitava que deixassem num compartimento, dinheiro correspondente ao que julgassem o valor do gasto. Na frente da máquina havia uma gravura com flores. Quando mudaram a gravura por outra com a imagem de dois olhos, as contribuições dos usuários aumentaram quatro vezes. Não eram câmeras, mas apenas uma foto fixa.
A sensação de se sentir observado exerce um efeito inibitório que provoca a autocensura em muitas pessoas. A questão é: até que ponto? Embora possa ter importante efeito em questões de desordem (barulhos, descarte de lixo, pixação, venda irregular de produtos etc.), grande parte dos infratores têm padrão de conduta desinibida, frequentemente despreocupados com as consequências de seus atos; eles não são como as “muitas pessoas”.
Ainda que se cuidem para não serem filmados, vão procurar momentos e lugares - as ditas oportunidades - mais adequados para a prática criminosa. Driblar câmeras passa a ser mais uma habilidade aos que já fogem de locais muito policiados ou iluminados.
Por mais que se coloquem câmeras, sobrarão lugares descobertos da vigilância eletrônica. Alguns locais são óbvios quanto à utilidade das câmeras, pela grande movimentação de público e os crônicos problemas decorrentes, como estações rodoviárias, de trem e metrô, proximidades de escolas e hospitais, pontos de interesse turístico, etc.
A experiência policial na identificação de pontos de alta incidência de infrações e crimes (manchas criminais ou hotspots) para orientar seu patrulhamento deve ser referência na definição de locais para a instalação de câmeras. Mas essa experiência mostra também que a aplicação do patrulhamento acarreta deslocamento das infrações, o que leva a ajustes do planejamento policial para acompanhar essa dinâmica de variação de local de incidência.
Ocorre que muitas câmeras geram inibição de infrações na sua área de abrangência, mas também favorecem deslocamento para áreas descobertas, e é difícil fazer a mudança dos aparelhos para acompanhar essa dinâmica dos infratores.
Outro fator bastante óbvio é a dificuldade de monitorar dezenas ou centenas de câmeras com suas imagens conduzidas à central de monitoramento, onde agentes farão varreduras visuais para identificar pontos de interesse da segurança. Como se sabe, a monotonia das imagens provoca rápida saciedade perceptual e testes têm mostrado que mesmo agentes treinados deixam de ver aspectos relevantes das imagens e poucos conseguem acompanhar mais que 10 monitores, sem perda de acurácia no exame das telas.
A solução para isso está no avanço da tecnologia que vem permitindo adicionar funcionalidades através de softwares baseados em inteligência artificial que permitem às câmeras registrar eventos, ao invés de transmissão passiva de imagens. Câmeras podem “ser ensinadas” a identificar presença em locais proibidos, pessoas sem máscara de prevenção ao Covid, arma em mãos de pessoas, movimentação atípica denunciando brigas ou acidentes de trânsito, cores de trajes de suspeitos, placas de veículos de interesse policial, etc. Essas informações padronizadas de eventos geram alarmes e destacam imagens na central de monitoramento, objetivando o direcionamento de ações dos agentes municipais ou da polícia.
Outra questão bastante delicada está na preocupação de alguns governantes municipais e estaduais em adotar sistemas de reconhecimento facial através de câmeras, para identificar criminosos procurados pela justiça e que estejam transitando pelas ruas, facilitando a reação policial. O reconhecimento facial vem sendo aplicado para controle de acesso em instalações públicas e privadas em sistemas bastante simples que permitem correções tradicionais quando aparecem problemas de conformidade. Mas nos sistemas de segurança pública existem fatores que trazem complexidade e responsabilidades diferentes no uso do reconhecimento facial.
Os arquivos de fotos de criminosos são robustos e as fotos, que servirão de referência para identificar pessoas, costumam ser de baixa qualidade, gerando algoritmos precários que podem resultar falsos positivos em grande quantidade. A coleta de imagens em ambiente aberto, diferentemente de situações de catraca, agrava a qualidade da coleta aumentando a já limitada acurácia dos sistemas de reconhecimento. Com acurácia de reconhecimento que raramente ultrapassa 80%, aumentam-se os riscos de crime de constrangimento ilegal e abuso de autoridade por parte dos agentes responsáveis pela detenção de pessoas. Vários países europeus e cidades americanas vem vetando essa solução por erros que se tornam verdadeiros abusos à cidadania.
Mesmo assim, valeria a pena adotar esse sistema pelo potencial impacto na redução dos crimes e melhora substancial da segurança pública? No Estado de São Paulo, onde não é adotada essa tecnologia, as polícias estaduais prenderam, durante o ano de 2021, a expressiva quantidade de 57.811 infratores com mandados de prisão ou apreensão (no caso de menores), praticamente um terço (33,33%) de todas as prisões efetuadas, 173.401.
Esses dados mostram que mais importante que a tecnologia no sistema de prevenção, as estratégias policiais, principalmente de patrulhamento da PM têm efetividade inigualável ao direcionar patrulhamento em áreas de alta incidência e realizar as abordagens com fácil acesso aos bancos de dados criminais. O Estado da Bahia, onde existe a mais robusta estrutura de reconhecimento facial contratada na secretaria da segurança pública tem se caracterizado como um dos estados mais violentos do país, com indicadores de homicídios seis vezes maiores que São Paulo.
Apontados alguns dos principais problemas do uso das câmeras nos municípios, cabem algumas considerações mais amplas sobre o tema.
Um primeiro aspecto é ampliar o conceito de participação das prefeituras na segurança pública. Os cidadãos comumente encaminham suas súplicas à polícia da cidade e ao prefeito, que são as autoridades mais próximas.
Mesmo sem pretender ampliar demais o foco dessas reflexões, é cada vez mais evidente, inclusive para as forças policiais do estado, que as prefeituras são parceiras essenciais no processo de contenção e controle do crime e da desordem pública, que induzem a percepção de risco e a percepção de insegurança. O crime, para se pensar em estratégias de contenção, está relacionado a três fatores: o criminoso, o alvo ou vítima e o local onde ocorre. O local, na maioria dos casos, é domínio municipal com suas ruas, seu comércio, sua iluminação, suas estruturas municipais, e até suas câmeras. A proximidade dos prefeitos com seus habitantes, os recursos municipais e suas políticas podem fazer a diferença entre uma cidade mais ou menos segura.
Há que se ir mais além e alguns casos são promissores, a exemplo das estruturas de São José dos Campos, Guararema e Jundiaí. O instrumental municipal ganha relevância quando interage com as estruturas e sistemas policiais. E vice-versa. Se a polícia abastecer as prefeituras com informações sobre locais e características de incidências de interesse de ambos -crimes, desordens, acidentes, vandalismo - podem ser identificados focos de maior análise sobre as peculiaridades locais que os tornaram interessantes aos infratores.
Ou seja, não basta identificar os hotspots, mas também entender como eles se formaram e porque permanecem como oportunidades interessantes aos criminosos e desordeiros. Um conjunto de intervenções municipais podem afetar ou até resolver os problemas: pode ser uma mudança semafórica, o corte de mato nos terrenos baldios, transformação de uma rua para duas mãos de trânsito para aumentar o movimento e a vigilância social, a arrumação de equipamentos sociais, melhorar a iluminação, colocar câmeras que identifiquem a passagem de veículos e geram informações para o sistema policial, etc.
Começamos a falar em integração de sistemas, com compartilhamento de instrumentos e informações. Mas é necessário ir além de uma plataforma integrada e robusta. É preciso conjugar competências para analisar não só o que passou, mas o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer. Inteligência se fortalece com cooperação e só faz sentido se orientar ações para afetar a ocorrência de problemas crônicos.
O futuro envia sinais que precisam ser percebidos pelos formuladores de políticas de segurança e para os especialistas em estratégias policiais. É necessário rever estratégias meramente reativas e pensar na análise dos problemas a serem afetados por medidas que interfiram nos eventos crônicos. Câmeras podem ser úteis para armazenar imagens a serem recuperadas para investigar ações criminosas, necessitando, para isso, armazenamento em nuvem, com alguma indexação (local, data, por exemplo) para fácil recuperação. Mas isso é tratar de crime já ocorrido, com pouco efeito sobre a prevenção. Acionar imagens de um local onde um crime está ocorrendo pode auxiliar a ação policial para eventual interrupção da infração e proteção da vítima, mas, para isso, será necessário um sistema extremamente ágil e com integração de vários subsistemas (prefeitura, câmeras da comunidade, indicadores da ação criminosa, centro de atendimento como o telefone 190 e Centro de Operações da PM).
O desafio imposto por eventos criminosos nas grandes cidades permite questionar qual o grau esperado de efetividade de um sistema com o máximo de potência de reação aos crimes em andamento. Nessa função a evolução do desenvolvimento de funcionalidades das câmeras, principalmente de inteligência artificial, pode ampliar sua utilidade nas ações de prevenção imediatas, ao identificar condutas classificadas como suspeitas, presenças de armas, gestos indicadores de agressão, detecção de acidentes de trânsito através de combinação de sons e imagens. Outra função das câmeras para a segurança e a ordem pública seria explorar as possibilidades de prevenção juntamente com outras fontes de coleta, como as informações criminais das polícias, as informações de desordem urbana e as de caráter social das prefeituras; informações ambientais geradas pelas câmeras também podem incrementar informações para que o processamento da inteligência integrada ofereça opções de intervenção urbana que auxiliem no processo de prevenção.
Percebe-se que os avanços para dar mais funcionalidade às câmeras para colaboração efetiva com a segurança dependem de estabelecer e refinar padrões de conduta criminosa ou de legítima suspeição, bem como de contextos em que o crime ocorre. Dos padrões-alvo deve-se fazer ajustamento de procedimentos operacionais de cada agência participante, polícias e entidades municipais. Uma plataforma avançada com profissionais treinados pode fazer essa integração encaminhar soluções que favoreçam evitar que os crimes aconteçam ou interrompam as ações criminosas, mais que meramente reagir às infrações registradas. O desenvolvimento de padrões é um trabalho a oito mãos: das prefeituras, das polícias, da iniciativa privada que desenvolve e oferece produtos e serviços e dos centros universitários e entidades de pesquisas.
Não há termos de referência ou normas de como devem ser estruturados, equipados e como devem funcionar centros integrados de promoção da segurança nas cidades. As entidades governamentais e privadas atuam sem padrões, com planejamento e procedimentos próprios e sem pontes de ligação entre elas para aproveitar o potencial de sinergias.
Participantes de uma de nossas reuniões apontaram para a necessidade de se desenvolver um manual que pudesse orientar os diversos participantes do sistema de segurança em cada cidade a buscar a integração de inteligência, equipamentos e soluções, principalmente de maior alcance preventivo, no sentido de reduzir a incidência de infrações criminais e outras que afetam a ordem pública e a qualidade de vida dos munícipes.
Um manual desse tipo requer uma equipe multidisciplinar, com visão e experiência do lado policial, da administração municipal e dos fornecedores de ponta. Seria necessário refletir sobre um arcabouço institucional, os papéis dos múltiplos participantes, a plataforma tecnológica com integração das variadas agências e seus processos, as interações institucionais (inclusive legais) e tecnológicas, os procedimentos padrões de respostas dos agentes, a previsão de conflitos de competência e os arranjos de solução, as matrizes decisórias, a especificação técnica de equipamentos essenciais em termos de funcionalidade, especificações para fornecedores (como garantias, assistência técnica, treinamento, atualização tecnológica etc.), bem como mencionar planos de contingências a eventos de maior magnitude e gravidade que possam ser previsíveis para cada cidade ou região.
Começamos falando da utilidade das câmeras na segurança das cidades, mas é forçoso colocar essa questão num nível mais amplo das instituições do estado e dos municípios que precisam se aproximar mais e oferecer a qualidade de solução que só a sinergia resultante dessa combinação de entidades podem produzir. Não basta mais mostrar artefatos de segurança como mero marketing político, nem continuar a fazer mais do mesmo com novas embalagens e programas com nomes apelativos. O marketing político tem pernas curtas se a solução não mostrar resultados perceptíveis no complexo campo de problemas da segurança pública que, necessariamente, também demanda respostas complexas.
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