No dia 24 de agosto de 2022, o Instituto Smart City Business America promoveu um debate sobre questões legais e a realidade de guardas municipais que realizam trabalhos de qualidade e se aperfeiçoaram profissionalmente ao longo de anos. Dela, participaram profissionais em posições relevantes da segurança pública e na gestão de estruturas e processos do aparato estadual e de alguns municípios, que nos ajudaram na elaboração deste artigo,
As experiências de oficiais que tiveram papel relevante na carreira de policiamento, tendo feito sofisticados cursos de gestão e exercido atividades no mais alto posto da carreira (coronel, no caso) por mais de 30 anos na PM, agregam especial relevância nas análises sobre o papel dos municípios e das guardas municipais no processo de prevenção.
Passando para o “outro lado do balcão”, a percepção desses gestores, agora sob a combinação de diferentes experiências, introduziu no debate importantes considerações, conforme relatadas adiante:
- A combinação do policiamento ostensivo com medidas de ordem pública dos instrumentos municipais é decisiva para a significativa melhoria da segurança da região, reforçando a ideia de que ordem nas ruas – incluindo sua limpeza, iluminação e regularização do comércio nas vias – está intimamente relacionada com a menor incidência criminal;
- No conjunto de estratégias da pasta há que se destacar a ampliação da integração das polícias estaduais com os municípios, incluindo tecnologias como o Sistema Detecta que coleta e processa dados multivariados de todas as localidades (como dados criminais, imagens de câmeras etc.);
- Os municípios apenas “imputam” dados, mas ainda não estão habilitados a fazer uso deles, o que deveria ser pensado num próximo momento, com novos protocolos de cooperação. Ou seja, cooperação mútua;
- No incentivo da aproximação e cooperação estão a formação e ampliação dos centros integrados de operações, que permitem o compartilhamento mais constante de informações e coordenação das ações, aproximando as agências que operam para a segurança.
- Cidades como Barueri, São Bernardo do Campo e Santo André operam com situações vantajosas, pelos elevados orçamentos dos municípios. Barueri, município com 250 mil habitantes, tem cerca de 100 PMs e 400 guardas municipais; São Bernardo do Campo conta com 600 guardas e Santo André dispõe de 400 agentes municipais, muito acima dos contingentes da Polícia Militar lotado nessas cidades. Além disso, cidades desse porte contam com invejável estrutura de controle operacional, viaturas, capacitação e boas condições de gestão, além de experiência acumulada ao longo de décadas. Essas secretarias municipais contam ainda com muita facilidade de coordenar suas ações com outras estruturas, processos administrativos e políticas municipais – educacionais, assistenciais, sociais, ordem no espaço urbano – com significativo alcance de prevenção.
É evidente que a cobertura da atividade ostensiva dos guardas amplia a percepção da segurança da população e constitui importante contribuição para a dissuasão de infratores e a redução do medo dos cidadãos, apesar da diferença percebida entre poder de resposta do PM e do guarda. Santo André é uma evidência dessa cobertura, com o encaminhamento às delegacias de 11 mil ocorrências por ano, dando atendimento aos problemas e aliviando a sobrecarga de trabalhos da PM local.
Outra dimensão importante do envolvimento dos municípios com a segurança é o fato de que o cidadão tem relação mais direta com a cidade e as autoridades locais, frequentemente procurando encaminhar seus pleitos, inclusive de segurança, através dos vereadores e da assessoria do prefeito, quando não com o próprio mandatário municipal.
Já na gestão municipal da segurança em São Bernardo do Campo, observa-se o acúmulo de encargos na atribuição constitucional das guardas de cuidar dos próprios municipais, já que há mais de 500 instalações de responsabilidade da prefeitura. Em Jundiaí, uma das vantagens oferecidas pela municipalidade é a obtenção de linhas de financiamento do BNDES que possibilita realizar atividades previstas no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que direcionam esforços integrados das três esferas de governo, mas principalmente do Estado com os municípios.
Uma das demandas é por maior abertura e cooperação das estruturas da segurança estadual com as áreas de confluência nos municípios, lembrando que casos emblemáticos, como Medellín e Bogotá, na Colômbia, tiveram bem-sucedidos casos de redução da violência pelo acentuado protagonismo das políticas e estruturas municipais. Além disso, é importante avançar nos entendimentos sobre a base de tecnologia para identificar pontos de convergência e reduzir custos, evitando superposição de estruturas concorrentes. Sob esse aspecto, um exemplo é a tecnologia que está sendo utilizada na Bahia, com aplicação de reconhecimento facial em áreas públicas, solução que vem sendo questionada na Europa e em muitas localidades nos Estados Unidos, por invasão de privacidade e limitação de acurácia na identificação de suspeitos. As câmeras para reconhecimento facial conseguem melhores efeitos quando operam em situações de confinamento, como em catracas ou acessos controlados, mas em ambiente aberto perdem precisão, inclusive pela má qualidade de fotos de bancos de dados e podem gerar situações problemáticas de constrangimento ilegal para os agentes policiais. Além disso, a câmera está longe de substituir o planejamento policial baseado em estudos de hotspots (locais de alta incidência de ocorrências) que orientam ações mais precisas sobre fatores dinâmicos, tanto sociais como criminais desses espaços, favorecendo abordagens mais cirúrgicas com mais probabilidade de identificar procurados pela justiça ou indivíduos em situações de crime, como a posse de armas ilegais e produtos de crime.
Quando se pensa em cidades inteligentes, do ponto de vista da segurança pública, não se pode imaginar que os melhores efeitos venham do hardware de câmeras, fios e fibra, monitores com grandes painéis em salas de controle. Também não seria um grande conjunto integrado de modernas imagens em nuvem, conectando múltiplos bancos de dados. A cidade inteligente no enfrentamento dos problemas de segurança pública dependerá de estratégias renovadas a partir desse complexo de dados integrados e tratados. Aí caberá explorar cada vez mais a cooperação das agências do estado e de cada município, quando se analisa os fundamentos do triângulo do crime: vítima ou alvo, agressor e local. Para muitos policiais da velha guarda e da velha estratégia repressiva, o foco seria o agressor, buscando intimidá-lo e prender a maior quantidade possível para reduzir os crimes. Mas os novos fundamentos da chamada “ciência do crime” orientam a busca de dados que identifiquem os fatores em cada local que estão atraindo agressores para a prática de crimes[1]. Quais são as oportunidades que cada local oferta aos infratores? Qual o equilíbrio de riscos e benefícios que pesam a favor da prática criminosa? Muita gente com celular na mão pode gerar oportunidade para os ladrões; com iluminação deficiente, pouca movimentação de pessoas e fragilidade de vigilância (policiais, guardas, câmeras) geram estimulante baixo risco. De qualquer maneira, quando se fala em análise de local como grande fator de gestão das medidas de prevenção mais profunda e menos óbvia, necessariamente se fala do espaço urbano sob administração das prefeituras. Nesse encontro no espaço municipal a ideia de inteligência para segurança ganha um outro sentido muito além de buscar prender criminosos ou alocar unidades policiais nos pontos de maior incidência criminal, desordens, acidentes em via pública etc. É a estratégia de ir além da tradicional luta contra o crime, explorando múltiplas medidas de prevenção, focando incidentes, mas procurando identificar e entender os fatores e condições que fomentam e disparam esses incidentes.
Policiais e agentes municipais devem rastrear, identificar e mapear os principais fatores de riscos aos cidadãos, como se apresentam as oportunidades para o crime, os fatores criminógenos influentes, bem como analisar o potencial de proteção das pessoas nesses locais e articulação de aumento de riscos aos infratores. Esse tipo de abordagem dos problemas locais demanda múltiplas intervenções para a efetividade dos resultados e fica evidente que as ações policiais cobrem apenas uma parte da solução. Medidas de proteção, por exemplo, não só para pessoas, mas também para patrimônios, são típicas das políticas públicas e estruturas do município, como é o caso da iluminação, cercamento de parques problemáticos, regras para funcionamento de bares noturnos, limites de velocidade nas vias públicas etc.
Só a desordem pública mereceria grande espaço para demonstrar sua relação com o estímulo às infrações que geram frequentes chamados aos policiais e aos guardas municipais. Pixações, lixo derramado, barulhos excessivos altas horas da noite, estacionamento irregular na via pública, entre outros fazem mais que transtornar a vida dos munícipes e incrementar demanda aos policiais e guardas. A desordem gera impressão de falta de vigilância, excita a liberação do autocontrole das pessoas, afasta cidadãos das ruas e reduz a vigilância social, além de criar ambiente propício para os crimes graves. E poucas das medidas de correção dessa ordem pública são contempladas pelas ações policiais.
As tecnologias de solução dos problemas urbanos ligados à segurança nas cidades dependem cada vez mais da inteligência na articulação de múltiplos fatores do Estado e de cada município. Quanto mais efetiva for essa articulação estrategicamente planejada, menos necessidade haverá para o incremento de força das polícias e das guardas municipais. É oportuno lembrar a definição da missão da polícia municipal da cidade da Filadélfia:
“Contribuir para a qualidade de vida do cidadão da Filadélfia, através da redução dos crimes, da desordem e do medo.”[2]
É preciso ir muito além de se pensar a segurança como a mera prisão de infratores e a redução de crimes; é preciso utilizar estratégias e recursos vinculados à segurança para promover a qualidade de vida da sociedade.
Elaborado por:
- José Vicente da Silva Filho – Vice-Presidente de Segurança Pública do Instituto Smart City Business America
Participaram deste SCB Forum e colaboraram para esse artigo:
- Álvaro Batista Camilo – Secretário Executivo da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo
- Carlos Alberto de Moura – Engenheiro de Desenvolvimento da L8 Group
- Carlos Alberto dos Santos – Secretário da Segurança Urbana de São Bernardo dos Campos SP
- Edson de Jesus Sardano – Secretário de Segurança Cidadã de Santo André SP
- José Roberto Rodrigues de Oliveira – Secretário Adjunto da Secretaria de Segurança Urbana e Defesa Social de Barueri SP
- Nelson de Sá – CTO da Techboard Latam
- Rogério Mota da Silva – Chefe do Departamento de Inteligência da Polícia Militar do Estado de São Paulo
- Paulo Sergio de Lemos Giacomelli Stel – Assessor Especial para Assuntos de Segurança Pública do Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGIM)
- Sílvio Aragão – CEO da Avantia
[1] A ideia de “ciência do crime” foi desenvolvida pelo Instituto Jill Dando, uma organização civil que se dedica aos estudos e busca de soluções práticas para os crimes e desordens nas cidades.
[2] Nos Estados Unidos a segurança é cuidada basicamente pelas polícias municipais, o que favorece a confluência de recursos para cuidar de problemas, mas gera um enorme custo para as prefeituras e dificuldades especiais para lidar com grandes crises e eventos.